O traumático assassinato de Samuel Paty, o professor que mostrou caricatura do profeta mulçumano antes de ser decapitado, coloca sobre a mesa uma dura realidade: após décadas de debates, continuamos sem saber se é mais importante a liberdade de expressão ou respeito aos sentimentos religiosos. Sem contar que só aumentam as vítimas de atentados com o passar dos anos.
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Presidente da França, Emmanuel Macron durante visita ao local do atentado em Nice, França, 29 de outubro de 2020
Emmanuel Macron viu neste ano um claro "ataque à República" e aos valores da revolução de 1789, que contam com um amplo apoio do povo francês. Um dos mais importantes, sem dúvida, é o laicismo, defendido pelo Estado francês desde 1905 e que agora está custando a Paris um boicote islâmico generalizado, organizado por Ancara.
Dois titãs se enfrentando
Os eventos que colocaram Paris e Ancara em lados opostos revelam que ambos os países estão dispostos a ir longe para defender suas convicções e valores mais profundos.
E, com o embaixador francês retirado temporariamente de Ancara e ante o questionamento de Recep Tayyip Erdogan sobre a saúde mental de seu homólogo francês, as relações turco-francesas atravessam momentos especialmente tensos.
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Presidente da Turquia, Recep Tayyip Erdogan discursa em Ancara, Turquia, 26 de outubro de 2020
Nestas condições, para trás ficam os bons tempos em que franceses e otomanos se davam a mão em uma firme aliança nos séculos XVII e XVIII. Então, a adversidade, em forma da Casa de Habsburgo, unia ambos os povos na defesa de seus interesses comuns, o que ficou materializado com o apoio de Paris ao cerco de Viena de 1683.
Contudo, agora parece que França e Turquia encontram cada vez mais razões para a discórdia: em somente um ano se enfrentaram pelas operações turcas em território curdo no norte da Síria sem aval da OTAN, pelas explorações de hidrocarbonetos no leste do mar Mediterrâneo, pelos interesses contrários na Líbia, e, agora, pelo conflito em Nagorno-Karabakh.
Quem tem razão?
Nenhum dos países parece estar disposto a renunciar a liderança que um dia os conferiu status de potência de primeira ordem e que, aos olhos de ambos, os legitima para reafirmar em suas posições. No caso da França, seguem vivos os valores que marcaram a Revolução Francesa de 1789 e que abriram caminho para futuras revoluções.
Por sua vez, a Turquia é a herdeira do Império Otomano, que em seu maior esplendor chegou a se expandir por três continentes e que esteve no centro das interações entre Oriente e Ocidente durante séculos.
Tudo isso ficou para trás com a fundação da República da Turquia, em 1923, por sorte de seu primeiro presidente, Kemal Ataturk, que iniciou uma etapa inconfessional no país que chega até nossos dias.
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Mausoléu de Ataturk, Ankara, Turquia
Contudo, não se deve esquecer que no país governado por Erdogan, durante 450 anos de líderes espirituais do mundo mulçumano sunita foram os califas, e o atual presidente não parece querer se desprender dessa história.
De fato, desde sua chegada ao poder em 2003, como primeiro-ministro, o sistema turco passou por uma volta do tradicional à política, ao direito e à sociedade, se distanciando do secularismo e a ocidentalização.
Desde 15 anos, entre os rumores do chamado neo-otomanismo, o mandatário turco tem se erguido como um dos grandes líderes do mundo mulçumano: seja no que tange à diáspora na Europa, à Palestina ou, neste caso, a todos os mulçumanos que se sentiram atacados pela atitude de Macron.
Não é fácil saber que passos concretos ou quais compromissos deveria adotar cada parte nesse conflito, porém, se demonstra claro que tanto Paris como Ancara dariam um bom gesto se fizessem uma aposta firme pela diplomacia.
Após um duro ano da pandemia da COVID-19 e suas terríveis consequências, tanto a França como Turquia sairiam ganhando se o passado e sua antiga grandeza não fossem colocadas em primeiro plano.
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