O Ministério Público de Lisboa Norte acusa o ex-militar Evaristo Carreira Marinho de homicídio qualificado, motivado por ódio racial, e uso de arma proibida, segundo despacho a que Sputnik Brasil teve acesso. O português, de 76 anos, matou o ator guineense, de 39, com cinco tiros em julho de 2020.
Marinho está preso preventivamente desde então. No despacho do último dia 13 de janeiro, o MP detalha o crime cometido no dia 25 de julho, reconstituindo a discussão que houve três dias antes, com base nos depoimentos de testemunhas. Naquela ocasião, o ex-militar enxotou a cadela de Candé com a bengala porque esta latiu para ele, enquanto passeavam pela Avenida de Moscavide, em Loures, na Área Metropolitana de Lisboa. Não satisfeito em xingar o animal, ele insultou seu dono também.
"Vai para a tua terra, preto! Tens toda a família na senzala e devias também lá estar!", disse Evaristo Carreira Marinho, segundo despacho do Ministério Público.
De acordo com o MP, durante a discussão, ele prosseguiu com os insultos: "Fui à c*** [vagina] da tua mãe e à daquelas pretas todas! Aquelas m*****! Eu violei lá a tua mãe! E o teu pai também! Vai para a c*** da tua mãe!". Levantando a bengala, o idoso avançou na direção de Candé e o ameaçou: "Anda cá que levas com a bengala! Preto de m****! Eu mato-te!". O ator guineense teria, então, o empurrado sucessivamente dizendo que só não batia nele porque era velho.
Neste instante, uma testemunha interveio tentando separar os dois. Em seguida, um carro passou no local e o motorista disse a Candé para ele ir embora dali. Quando o ator estava entrando no veículo, Marinho teria dito: "Tenho lá armas em casa do Ultramar e vou-te matar!", falando de modo sério, como destaca o despacho do MP. O ex-militar da Guerra Colonial prestou serviço militar em Angola entre 1º de outubro de 1966 e 26 de setembro de 1968.
Segundo a testemunha, mesmo após Candé ter ido embora, Marinho repetiu, de forma séria, que iria matá-lo, ao que o interlocutor respondeu que não valia a pena estragar a vida. Na sequência, o ex-militar determinou-se a tirar a vida da vítima, de acordo com o MP. Para isso, passou a levar com ele uma pistola Walther PP, calibre 7,65, de uso exclusivo de forças policiais.
Com a arma devidamente municiada, passou diversas vezes pela Avenida de Moscavide, pois sabia que Candé a frequentava diariamente, onde ficava sentado em um banco, ouvindo música, na companhia de sua cadela. Por volta das 13h20 do dia 25 de julho, ao vê-lo sentado no muro de um canteiro, tirou a arma do coldre e, de forma súbita, deu o primeiro tiro. Com o ator caído ao chão, sem chance de se defender, o ex-militar se aproximou dele e efetuou mais quatro disparos em órgãos vitais, de acordo com o MP.
"O arguido atuou com a intenção de tirar a vida de Bruno Candé Marques, uma vez que visou as acima referidas partes específicas do corpo deste, propondo-se a aí atingi-lo e a matá-lo, bem sabendo que usando uma arma de fogo com as características e do modo descritos, atuava de modo adequado a provocar-lhe a morte, como pretendia e logrou", lê-se em um trecho do despacho do MP.
Munições encontradas em mala codificada dentro de roupeiro
Após o assassinato, Marinho tentou abandonar o local do crime, mas foi detido alguns metros à frente por algumas pessoas, ao que ainda manifestou oposição. No mesmo dia, entre 15h30 e 15h45, foram encontradas 25 munições de calibre 7,65 mm dentro de uma mala com código escondida no interior de um roupeiro na casa do ex-militar, a 400 metros da cena do crime. Conforme o MP, ele adquiriu o material há mais de 20 anos.
De acordo com a jornalista portuguesa Joana Gorjão Henriques, que revelou o caso no diário Público, Marinho confessou ser o autor do assassinato à Polícia Judiciária (PJ) e ao próprio Ministério Público, embora tenha negado o racismo como motivação. A negação não convenceu o MP, que tipificou o crime como homicídio qualificado, que tem pena de prisão de 12 a 25 anos "se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade", segundo o Código Penal português.
A censurabilidade ou perversidade a que se refere foi apontada pelo MP levando em consideração as alíneas que descrevem o crime por motivo torpe ou fútil determinado por ódio racial, gerado pela cor, origem étnica ou nacional. Uma das alíneas diz respeito a "agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas".
"Agiu ainda o arguido determinado por razões vãs, em concreto por se encontrar desagradado com a discussão que tinha tido com Bruno Candé, no dia 22 de julho de 2020, bem sabendo que a arma usada constituía um meio especialmente letal e que ao agir da forma descrita, de modo inesperado e estando este sentado e depois prostrado no chão, o fez de forma falsa, traiçoeira, impedindo-o de se aperceber da sua atuação e de se defender, refletindo sobre o meio a usar e persistindo nessa intenção e modo da respectiva concretização, desde a referida discussão", acusa o MP no despacho.
No dia seguinte ao homicídio, a Polícia de Segurança Pública (PSP) informou que nenhuma das testemunhas ouvidas havia apontado motivações racistas para o crime. O despacho de acusação do MP, que agora vem à tona, mostra uma realidade bem diferente.
"Mais agiu o arguido, de modo descrito, determinado, não só pela dita discussão, mas também pela cor e origem étnica de Bruno Candé, pois que na discussão mantida no dia 22 de julho de 2020, à qual se seguiu a formulação do propósito de o matar, a ele dirigiu as diversas expressões que acima se mostram descritas, nas quais a tal, em concreto à cor da sua pele, expressamente se referiu", lê-se em outro trecho do despacho.
Deputada celebra acusação e cobra celeridade da Justiça
A deputada Beatriz Gomes Dias, do Bloco de Esquerda, celebrou a acusação de homicídio qualificado com motivação por ódio racial. Segundo ela, o despacho revela um reconhecimento do racismo como fator que desencadeou o crime, o que tem uma dimensão trágica, mas permite reforçar a tese de que há manifestações inequívocas de racismo em Portugal. A parlamentar também cobra celeridade da Justiça.
"Foi uma acusação muito importante, que reforça o que era nossa convicção de que o crime hediondo tinha contornos raciais. O Evaristo Marinho tinha ameaçado Bruno Candé ao longo de vários dias com frases racistas e violentas. A PSP tinha se apressado sem ter recolhido nenhuma informação. Depois, houve uma campanha de criminalização da vítima, como se fosse responsável pelo fato de ter sido assassinado. É preciso que se faça justiça a Bruno Candé: julgar e condenar seu homicida da forma mais rápida possível. A família precisa desse julgamento", afirma Beatriz Gomes Dias à Sputnik Brasil.
A deputada bloquista destaca a importância de organizações da sociedade civil que têm pressionado para que o caso não caia no esquecimento, cobrando as autoridades por um julgamento rápido. Para ela, não se pode correr o risco de a motivação por racismo ser eliminada, como já ocorreu em outros julgamentos.
"É fundamental garantir que a dimensão do ódio racial não caia nessa acusação. Vamos ser bastante intransigentes na defesa de que essa motivação não pode cair. Já houve outros julgamentos em que caiu porque não tinha ficado inequívoco como causa para o crime. Os movimentos sociais, que são fundamentais no combate ao racismo e à discriminação, têm mantido a pressão sobre as autoridades. As ONGs têm sido intransigentes na denúncia de casos de racismo, como nesse caso concreto", acrescenta.
Sputnik Brasil entrou em contato com Alexandra Bordalo Gonçalves, advogada do acusado, mas ela disse que não vai se manifestar no momento. Olga Araújo, irmã de Bruno Candé, também foi procurada para comentar o despacho, mas não respondeu até o fechamento desta reportagem. Após a morte do ator, a família divulgou um comunicado em que dizia que "o seu assassino já o havia ameaçado de morte três dias antes, proferindo vários insultos racistas", o que deixava "evidente o caráter premeditado e racista deste crime hediondo". Uma semana depois, vários protestos foram realizados em Portugal para cobrar respostas das autoridades.
"Eu espero que mude algo e que haja leis para punir. O principal é começar na educação, desde a infância. Se começar pela educação, nos infantários, esses meninos, se tiverem pais racistas, vão dizer: 'Ensinaram-nos na escola que não devemos fazer isto'. É isso que queremos", disse Olga à Sputnik Brasil na ocasião.
Bruno Candé chegou a atuar na telenovela "A Única Mulher", mas teve a carreira recente dedicada ao teatro. Ele estava preparando uma peça junto com a companhia teatral Casa do Conveniente. O ator deixou três filhos, dois meninos, de cinco e seis anos, e uma menina, de três.
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