Paciente com coronavírus em hospital em São Paulo e Jair Bolsonaro (Foto: Reuters) |
O epidemiologista Paulo Lotufo, da Faculdade de Medicina da USP, afirmou que a situação da pandemia no Brasil é catastrófica e que a ausência de gestão sanitária do governo federal é o maior inimigo
Rede Brasil Atual - Até a manhã desta quinta-feira (18), o Brasil contava 965.512 mil casos de covid-19 e 46.842 mortes, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde, o Conass. Para o epidemiologista Paulo Lotufo, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, “o cenário é terrível”, porque a epidemia não está em queda. Para ele, não há razão para se flexibilizar o isolamento social no país, e tampouco para se acreditar em tratamentos da covid-19 com remédios, como a cloroquina. A única resposta que poderá ser eficaz contra a pandemia de coronavírus é uma vacina, defende.
Lotufo aponta as políticas de liberalização da quarentena como precipitadas nos estados, e cita como um dos piores exemplo o Rio de Janeiro. “Você faz uma previsão, e aí liberam tudo… Veja o Rio de Janeiro como está. Um horror”, destaca. No estado governado por Wilson Witzel (PSC), foram contabilizadas 8.138 mortes e 86.963 casos até quarta-feira (17).
Em entrevista à RBA , o epidemiologista afirmou que a abordagem dos presidentes Donald Trump, dos Estados Unidos, e do brasileiro Jair Bolsonaro, no enfrentamento da pandemia, é “estúpido”. “Por que o que fez Trump sobre a cloroquina, e Bolsonaro repetiu, é estúpido? Porque nenhuma epidemia você trata com remédio”, afirma o pesquisador.
Pesquisas
Atualmente, há projetos de pesquisa de vacina contra o novo coronavírus avançados na Inglaterra com a (empresa farmacêutica) AstraZeneca. Outra iniciativa, na China, pode viabilizar a produção de uma vacina no Brasil, numa parceria com o governo de São Paulo, via Instituto Butantã. A previsão é de que a vacina sino-paulista seria fornecida até junho de 2021, segundo o instituto.
Tecnicamente, diz, uma questão importante é saber qual será a validade da futura vacina, se ela passar por todos os testes. Lotufo observa que, por exemplo, uma única aplicação da vacina da febre amarela produz uma imunização definitiva, enquanto a do tétano precisa ser inoculada a cada dez anos e a da gripe, anualmente. “A questão é saber se você vai tomar a cada ano, dois anos, cinco, dez…”, observa.
Confira entrevista de Paulo Lotufo
Como avalia a atual situação da pandemia de covid-19 no Brasil?
Essa história é terrível, porque não estamos numa situação de queda. Vejo dois comportamentos. Um é daqueles lugares onde não houve controle, em que as condições hospitalares eram péssimas, como Manaus. Você tem um pico, uma mortalidade elevadíssima e depois cai. No caso de São Paulo, o isolamento funcionou parcialmente, e isso fez com que a curva não subisse, mas ficasse num platô, estacionada durante um bom tempo. E tem uma diferenciação social grande em São Paulo. Nos bairros mais pobres ainda está subindo, mas nos outros está estabilizada e com tendência de queda.
Mas aí se faz essa abertura, com ônibus lotados etc. Então a tendência é não cair a curva. Alguém falou em segunda onda em São Paulo, mas não existe segunda onda em São Paulo. O que existe é primeira onda, que não acabou.
Então, essa flexibilização pode ter um efeito dramático nas próximas semanas?
Sim, sem dúvida.
O Brasil já se tornou um exemplo de como não enfrentar essa pandemia, não fez isolamento como devia, e faz uma abertura precipitada. Há como prever de modo global, no país, o começo do fim dessa pandemia?
Não dá, pelo seguinte: por exemplo, o governador de São Paulo (João Doria) falou (em 22 de abril) que a quarentena seria relaxada dia 11 (de maio) e ele ia pensar em novas atitudes. Quando ele disse isso, se entendeu que ia flexibilizar, e se relaxou. A decisão que ele tomou no dia 11 (quando começou o relaxamento da quarentena) foi motivada pela própria frase dele.
É como mercado financeiro. Se você fica prevendo, você interfere nos sistemas. No mercado financeiro, o Banco Central só lança o valor da Selic depois que fechou a Bolsa. Porque senão você passa a interferir em tudo. Essa é a questão. Se você colocar no Google “pico covid Brasil”, você vai “dar gargalhadas”. Uns previram 10 de abril, outros previram para 6 de maio…
“Imunização por rebanho?”
A chamada imunização por rebanho, então, não tem lógica?
Não tem a mínima lógica. Precisaria chegar a 70% de infectados. Calculando 70% de 210 milhões, com 1% de mortes, você vai ter entre um milhão e um milhão e quinhentas mil pessoas mortas. É como se você jogasse uma bomba em cima de Campinas e arredores.
A letalidade de 1% não é baixa?
Depende. Esse é um erro que muita gente comete. A taxa do ebola é altíssima (em torno de 50%). Mas o número de casos de ebola (oficialmente, 28 mil casos e 11,4 mil mortes no surto iniciado em 2013 na África) é muito pequena, perto de qualquer outra infecção viral. Então, a mortalidade do ebola vai ser baixa. Mas (em tese), com 1%, se você pega uma infecção que atinge 70% da população, é um horror (1.470.000 óbitos).
Diante do quadro de hoje, é possível prever um número aproximado de mortes no país? Esse número de quase um milhão e meio pode ser real?
Não vai chegar nisso, porque as medidas que vão sendo adotadas vão contendo. Mas tem essa ideia da imunização de rebanho, que a Inglaterra começou a fazer de forma estúpida, sem sentido, porque o país tem a melhor saúde pública. A Suécia fez… E é catastrófico. Depois voltaram atrás.
Acho que fica bem longe disso, porque o número de mortes está subindo como uma curva logarítmica, e não exponencial. Ou seja, sobe, mas com uma certa desaceleração. No estado de São Paulo é nítido que existe uma desaceleração.
Mas é difícil explicar desaceleração para as pessoas, porque é equação de segundo grau, e as pessoas só entendem equação de primeiro grau, e olhe lá. Então, você tem um aumento que é menor dia a dia, tende a ficar estabilizado e depois cair.
Em busca de uma vacina
E não tem como prever quando?
Não, porque você faz uma previsão, e aí liberam tudo… Veja o Rio de Janeiro como está, um horror (8.138 mortes e 86.963 casos até quarta, dia 17). A situação fica mais complicada em termos de contaminação.
É possível estar otimista em relação a uma vacina?
Eu não vejo outra saída para um problema de massa que não seja a vacina. Por que o que fez Trump sobre a cloroquina, e Bolsonaro repetiu, é estúpido? Porque nenhuma epidemia você trata com remédio. Se você for dar remédio para 7 bilhões de pessoas você mata mais com o remédio do que pela epidemia. Não é porque é a cloroquina. Se fosse aspirina ou novalgina, seria a mesma coisa.
A saída realmente é a vacina. E aí a disputa que está aí, no mundo inteiro. A Inglaterra saiu na frente, com a (farmacêutica) AstraZeneca; ainda tem a da China (pelo laboratório Sinovac Biotech), com o Instituto Butantã; a Pfizer nos Estados Unidos, os russos…
É possível estar otimista em relação à vacina da China aqui no Brasil?
Não sou expert em vacina, para dizer se é boa, adequada, fácil de fazer. O que sei é que se tivesse um governo federal de fato, um Ministério da Saúde de fato, o Brasil ia dizer o seguinte: “a gente só fará o teste no Brasil se tiver algum tipo de transferência de tecnologia”. Isso seria uma das coisas a serem feitas, mas não vai ser feito, porque eles não pensam nisso.
O papel da pesquisa
Mas, no caso, trata-se de uma parceria do governo do estado de São Paulo com a China…
Nesse caso, é o governo paulista. Quem vai acabar segurando a questão da vacina no Brasil vai ser o governo de São Paulo, via o Instituto Butantã, e também a Fapesp, dando apoio. E depois talvez se passe para a Bio-Manguinhos (unidade produtora de imunobiológicos) da Fiocruz, para produzir. Com certeza teria que se construir a toque de caixa uma nova fábrica.
É possível prever em quanto tempo tal vacina possa ser disponibilizada para a população?
Eu tive experiência fazendo testes para vacina da H1N1. Acho que o mais problemático é você ver os riscos da vacina. A questão se é imunogênico ou não, você consegue ver rápido. Você faz os testes, verifica os anticorpos neutralizantes e consegue ler isso.
Mas a questão são os riscos que podem existir numa vacina. E existem. Essa é uma das coisas que demoram um tempo. Pelo que li na entrevista do Dimas Covas (presidente do Instituto Butantã) no Estadão, se der certo, vai-se começar a produção no Butantã, mas parte considerável vai ser importada da China, até que se tenha condição de se produzir aqui.
A outra questão é qual é a validade da vacina. Você tem, por exemplo, a vacina da febre amarela, que antigamente se falava que era para dez anos, mas não se fala mais nisso. Você tomou uma vez e está imunizado. A do tétano é a cada dez anos. A da gripe é a cada ano. A questão é saber se você vai tomar a cada ano, dois anos, cinco, dez, vai depender disso.
A curva da pandemia em São Paulo
É correto dizer que a curva na capital de São Paulo vai começar a baixar antes do interior do estado?
Não é tendência, já está. São Paulo está estável. Mas não está caindo, na capital. Mas estar estável não é nada positivo. Veja, estável é o seguinte: a cada mês você devia mais no seu cartão de crédito. A partir de um mês, você passou a dever sempre a mesma coisa. Como está sua situação? Está péssima. Deixou de continuar cada vez pior, mas continua muito ruim.
Atualmente estamos numa fase em que todo governador e prefeito vai à televisão e tenta vender que está fazendo uma coisa fantástica, que as coisas estão melhorando… Ficam vendendo uma coisa dessa, depois não dá certo.
Ou seja, pode voltar a subir…
Pode! Olha só o absurdo o que aconteceu em Ribeirão Preto. Estava supercontrolada a coisa lá. Aí começaram um papo muito “gaiato” de que já estava caindo, e abriram. Explodiram os casos em 15 dias.
E a questão do colapso dos hospitais? Não foi menos grave do que se previa no início?
Não foi grave em São Paulo. Mas no Rio de Janeiro, Manaus, Recife, Rio Grande do Norte, São Luis, Belém, foi um horror. São Paulo não foi porque se organizou bem a coisa. O Hospital das Clínicas fez uma coisa maluca, pegou o prédio principal e transformou só para covid.
Mais o Emílio Ribas, onde fizeram uma central em que só os casos mais graves iam para lá, e os outros casos ficavam nos hospitais com menos aporte tecnológico. Tem três ou quatro hospitais de campanha. Não colapsou por isso, se trabalhou muito bem.
Brasil desperdiçou oportunidade
Mas não se manteve a quarentena…
Se a gente tivesse mantido como no começo e depois de um determinado momento tivesse feito um lockdown de verdade, uma semana paralisando mesmo, a gente estaria em outra situação, muito melhor.
É correto dizer que o Brasil teve tempo suficiente para ser um exemplo para o mundo?
Teve, teve. Começou junto com a Argentina (atuais 35 mil casos e 929 óbitos), que está numa situação muito melhor.
Como compara o Brasil (965 mil casos e 47 mil mortes) com os Estados Unidos ( 2,2 milhões e 120 mil)?
É quase a mesma irresponsabilidade. Lá também foi catastrófico. Nova York foi catastrófico. Conheço dois médicos que trabalharam lá. Eles falaram que em Nova York chegaram a empregar escrivaninhas para colocar pacientes, porque não tinha maca. E a mortalidade lá foi muito alta. E agora estão abrindo em outros lugares, e está aumentando muito em lugares como Texas, Arizona, Florida.
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