Governo turco reacende debate sobre passagem de navios militares pelos estreitos de Bósforo e Dardanelos, que poderia dar acesso ao mar Negro à embarcações da OTAN. Blefe de Erdogan ou perigo real para a Rússia?
Nesta semana, acontecimentos na Turquia reacenderam a velha disputa pelo trânsito nos estreitos de Bósforo e Dardanelos.
Essenciais para o acesso ao mar Negro, aonde se encontram países como Rússia, Ucrânia, Geórgia, Bulgária e Romênia, ambos os estreitos ficam em território turco, mas são regulados por leis internacionais, estabelecidas na Convenção de Montreux de 1936.
A relevância geopolítica dos estreitos é tamanha que muitos historiadores apontam Bósforo e Dardanelos como um dos fatores que motivaram a Primeira Guerra Mundial.
Na semana passada, o presidente do parlamento turco, Mustafa Sentop, gerou furor ao sugerir que o presidente do país, Recep Tayyip Erdogan, teria o poder de se retirar da Convenção de Montreux e aplicar as leis turcas aos estreitos.
Em resposta, militares aposentados publicaram carta alertando para a importância da Convenção de Montreux. Dez almirantes foram presos após assinarem o manifesto, considerado pelo presidente turco como incitação a um golpe militar.
A convenção é objeto de disputa política na Turquia: enquanto militares apoiam a sua vigência, alas mais conservadoras e nacionalistas do espectro político a consideram uma violação da soberania do país.
Mas porque a convenção de Montreux gera tanta polêmica? É verdade que a sua revogação poderia gerar um conflito militar regional de grande escala? A Sputnik Brasil conversou com o pesquisador do Instituto de Economia Mundial e Relações Internacionais Primakov da Academia de Ciências da Rússia (IMEMO-RAN, na sigla em russo), Pavel Gudev, para responder a essas perguntas.
"A Convenção de Montreux é multilateral e não pode ser cancelada por nenhum país isoladamente", disse Gudev à Sputnik Brasil. "Do ponto de vista do direito internacional, isso não pode ser feito."
Segundo ele, é possível "rever os seus termos, através da convocação de uma nova conferência. Mas simplesmente dizer que o Erdogan pode, com uma canetada, sair da Convenção de Montreux é uma provocação", disse o especialista.
A convenção garante o livre trânsito de navios comerciais pelos estreitos, sem que a Turquia possa cobrar tarifas sobre a passagem, o que gera insatisfação em parte da classe política do país.
Além de não lucrar com os estreitos, a Turquia ainda deve controlar a passagem de navios militares, que é severamente regulada pela convenção.
"Caso a Conferência de Montreux fosse cancelada, em tese, o regime que passaria a valer nos estreitos seria o da Conferência dos Direitos do Mar da ONU, que prevê que a livre navegação, uma norma bastante liberal de direito marítimo que não permite restrições de nenhum tipo, nem a navios militares", considerou Gudev.
Por isso, "para a Turquia, sair da convenção de Montreux agora não faz sentido, não tem nenhuma conexão com a realidade".
Canal Istambul
Mas a Turquia não precisaria se retirar da Conferência de Montreux para cobrar tarifas e controlar totalmente a passagem pelos estreitos.
O governo Erdogan apoia a construção de um novo canal, chamado Canal Istambul. Paralelo ao Bósforo, o novo canal garantiria um acesso alternativo ao mar Negro.
"Ao mesmo tempo em que o Canal Istambul desafogaria o tráfego pesado do Bósforo, a Turquia também teria uma alternativa sob sua soberania, fora dos limites de Montreux", disse Erdogan durante conferência de imprensa nesta segunda-feira (5).
De fato, "o Bósforo nem sempre consegue dar conta de todo o tráfego marítimo. Já houve acidentes e vazamentos de combustíveis preocupantes [no estreito]", disse Gudev.
"Cerca de 19 milhões de pessoas vivem na região. Caso essas vias aquáticas sejam poluídas por acidentes, há um dano colossal para uma população significativa, tanto pela poluição das águas, quanto da costa", concedeu o especialista.
Além disso, a Turquia poderia cobrar pelo tráfego marítimo no novo canal, "o que traria recursos financeiros para o país e seria positivo para o seu orçamento".
OTAN no mar Negro?
Mas a pergunta chave é se os turcos deixariam navios militares da OTAN entrarem no mar Negro a partir do novo canal.
"A distância entre o novo canal e a Crimeia seria de aproximadamente 350 milhas marítimas, sob o ponto de vista dos interesses russos esse é um risco que não vale a pena correr", considerou Gudev.
Apesar da preocupação, a Turquia tem um histórico positivo quanto ao controle do trânsito de navios militares no Bósforo e no Dardanelos. "A Turquia aplica com seriedade as restrições de passagem de navios militares", relatou o especialista.
"Em 2008, durante o conflito entre Rússia e Geórgia em função da Ossétia do Sul, os norte-americanos tentaram passar dois navios-hospitais pelos estreitos, de dimensões muito superiores às permitidas pela convenção de Montreux, para apoiar as operações georgianas", relatou Gudev. "A Turquia não autorizou a passagem."
As restrições ao tráfico de embarcações militares são mais brandas aos países do mar Negro, "que têm muito mais direitos de passagem do que países extra-regionais".
"Submarinos nucleares russos podem, por exemplo, passar pelos estreitos turcos. Mas os países de fora da região não podem trazer seus submarinos ao mar Negro", explicou Gudev.
Em 2018, as autoridades turcas inclusive fortaleceram o regime de controle e passaram a considerar navios civis com carga militar como embarcações militares.
"Apesar de essa nova norma interferir no tráfego de cargas militares russas para a Síria, a restrição atinge sobretudo os EUA, que demandam o envio de cargas militares para países como Bulgária, Romênia, Ucrânia, Geórgia", disse Gudev.
"Nesse caso, a Turquia acabou dificultando muito mais a vida dos EUA do que de qualquer outro ator", notou.
Segundo ele, os EUA "não dão apoio entusiasmado à manutenção da convenção de Montreux", pelas "restrições severas à entrada de navios militares e ao tempo de permanência desses navios no mar Negro".
"Para os norte-americanos e para a OTAN [...] as condições de Montreux não são favoráveis", afirmou Gudev.
Apesar dos riscos, o especialista acredita que o debate sobre a saída da Turquia de Montreux atual está mais ligado "às querelas da política interna turca do que à questão internacional".
"É uma queda de braço entre as elites políticas e militares", apostou o especialista. "Erdogan parece querer construir seu império e se transformar em um líder incontestável."
Por enquanto, "a Rússia não precisa reagir a essas declarações, que são voltadas para o público interno".
Nesta segunda-feira (5), o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, reafirmou o compromisso de seu país com a Convenção de Montreux. Segundo ele, a Turquia "não tem a intenção" de deixar o acordo, mas não hesitaria em rever suas condições para angariar "condições mais favoráveis à Turquia".
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