Um outro critério avaliado foi a prevalência de assassinatos extrajudiciais por agentes da lei, atividade que constou em vários países, como o México, mas que no Brasil foi considerado endêmico, de acordo com o estudo.
Para ex-diretora do sistema penitenciário do Rio de Janeiro e ex-ouvidora da polícia, a socióloga Julita Lemgruber, citada pela mídia, "a guerra às drogas, no Brasil, tem sido uma desculpa
para a polícia matar jovens negros".
O país que somou maior pontuação, ou seja, o lugar do globo onde políticas de drogas têm sido melhor aplicadas foi a Noruega, com 74 pontos. Já o Brasil, último colocado, 26. A média global foi de 48 pontos.
A Sputnik Brasil entrevistou Leonardo Jordão, doutorando e pesquisador do programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (UNESP - UNICAMP - PUC-SP) e membro do Núcleo de Estudos Transnacionais da Segurança (NETS) para entender por que o Brasil teve uma pontuação tão baixa e o que é preciso ser mudado nas diretrizes antidrogas do país.
Para Jordão, o resultado do estudo não foi uma surpresa, uma vez que "a política de drogas no Brasil é historicamente repressiva e punitiva, utilizando, ainda hoje, o modelo exportado pelos EUA na metade do século XX, que é a 'política de guerra às drogas'".
"Interpreto essa política de guerra aos narcóticos como o uso repressivo da força para criminalizar algumas drogas em detrimento de outras."
O especialista salienta que se refere a "algumas drogas" porque a palavra droga envolve não só os
narcóticos ilegais como a maconha, cocaína, etc, mas também os remédios ansiolíticos, por exemplo. Entretanto, "esses remédios ou outros que estamos acostumados a pensar como drogas lícitas, eles não têm o mesmo tipo de enfoque político que tem a maconha".
"Nos EUA houve um esforço político e de atores privados, como a indústria farmacêutica, para criminalizar algumas drogas e outras não. As criminalizadas, são as que não é possível ter um controle sobre elas, as que não foram criminalizadas, são as que o governo teria mais chance de controlar e obter lucro em cima", explicou Jordão.
O termo "pacificação", muitas vezes utilizado em algumas operações antidrogas nas favelas do Rio de Janeiro, seria proveniente dessa mesma política, pois o termo foi criado para "realizar um controle sobre a ordem social e esses narcóticos tachados como proibidos, além de criminalizar grupos que estão ligados ao uso e comércio dessas drogas".
"O fato de o Brasil estar no fim desse ranking é resultado de uma política que se aplicou com bastante violência, através do racismo estrutural, a truculência da polícia, o uso da prática estatal para fins que muitas vezes não respeitam os direitos humanos. Essa política se encaixou perfeitamente no intuito dos EUA em criminalizar alguns grupos e algumas drogas no nosso país."
Drogas como questão de saúde pública
Países desenvolvidos com alto IDH e PIB também ficaram com uma pontuação baixa na pesquisa da Global Drug Policy Index, e Jordão explica que, nessas nações,
assim como na ONU, a política norte-americana foi de grande influência para que o tema seja tratado de forma não adequada.
"Podemos pegar o exemplo de Portugal, que é considerado referência no tratamento de drogas por enxergar o assunto como uma questão de saúde pública, onde todos os narcóticos são descriminalizados desde o início do século XXI, e lá, os números de consumo e de mortes relacionados à violência ou uso de drogas são muito mais baixos que no Brasil", exemplifica.
Para Jordão, é necessário tirar as drogas de uma esfera criminal e levar para esfera de saúde pública e, enquanto isso não for resolvido, pesquisas como essas sempre vão mostrar números baixos e negativos.
"O lucro das indústrias farmacêuticas, que sempre influenciaram essa política de controle, é altíssimo com as drogas que eles ajudaram a definir como sendo os narcóticos permitidos para a comercialização. Portanto, apesar de haver alguns avanços, esses resultados ainda são uma marca dessa política global de controle e criminalização."
O especialista destaca que não só as políticas devem mudar, como também é necessário um debate público e global mais amplo para "recriar e readaptar o conceito de regulação das drogas".
Violência de agentes públicos
Na pesquisa, foi relatado que o Brasil apresenta um alto número de casos de violência
por parte de agentes públicos no combate às drogas, sendo um problema tão forte que se tornou "endêmico".
Entretanto, na visão do especialista, essa questão não é endêmica somente ao Brasil "por exemplo, no México, o problema é na mesma intensidade".
"Vale lembrar que o México ocupa um lugar central na geopolítica dos EUA por ser um país vizinho e também por ser um grande distribuidor de drogas ilícitas como a cocaína e, mais recentemente, os derivados da papoula. […] O país sempre foi muito influenciado pela política antidrogas dos EUA."
O especialista relata que em 2007 foi criado um acordo militar, nomeado Iniciativa Mérida, entre Estados Unidos, México e os países da América Central, com o objetivo de combater as ameaças do narcotráfico, crime organizado transnacional e lavagem de dinheiro. O pacto inclui treinamento, equipamentos e inteligência.
"Essa iniciativa fortaleceu a lógica de combate militarizado às drogas e a grupos sociais ligados a ela. Hoje, o cenário mexicano conta com um recorde anual de homicídios que decorrem dessa política de repressão que gera conflitos entre grupos que tentam controlar o mercado ilícito e agentes de segurança."
Mesmo diante desse quadro, o Brasil ainda ficou atrás do México na pesquisa, e para Jordão, é importante nos perguntarmos "se a violência é uma consequência ou uma causa da política de drogas e é possível reduzir essa violência com as políticas atuais".
Na concepção do especialista, no Brasil, a questão é direcionada mais como endêmica "pelo número de homicídios que o país tem e pelo alto índice de encarceramento em massa, que afeta principalmente os indivíduos negros e pobres […]."
"A nossa polícia truculenta é uma herança da época colonial, da ditadura, da forma como a polícia foi pensada para ordenar alguns grupos sociais para proteger certos princípios da Constituição como a propriedade privada acima da vida humana, e também por essa onda conservadora que passou e passa pela corporação, a qual deslegitima os direitos humanos", elucidou o pesquisador.
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Extermínio negro através de políticas públicas
Jordão salienta que, dentro do grupo mais afetado pela violência executada pelo combate às drogas,
a população negra e de periferia é a que mais sofre atentados contra sua própria vida.
"O Atlas da Violência de 2019 mostra que se você for negro no Brasil, você tem 2,6% mais chances de morrer do que uma pessoa branca, e hoje, o encarceramento em massa, também conta com uma grande parcela de pessoas negras."
O pesquisador conta que a Lei das Drogas de 2006 do Brasil estabelece a diferença entre o traficante e o usuário a partir da quantidade de narcótico que foi apreendido com o indivíduo na abordagem policial, contudo, essa abordagem difere de pessoa para pessoa.
"O contexto em que o indivíduo é abordado é reafirmado pelo nosso racismo. Se a pessoa que foi pega com drogas for negra, morador de comunidade periférica, a quantidade de droga, mesmo que seja pequena, pode a levar à prisão ou até à morte. A resposta policial para uma pessoa branca, que esteja também portando narcóticos, é muito diferente."
Para Jordão, o racismo é "uma face da política capitalista de controle de drogas, enquanto não tivermos uma discussão mais ampla acerca das drogas e da violência contra certos corpos, ainda haverá uma maioria negra ou morta ou que ocupa mais lugares no sistema prisional brasileiro".
Mudança nas abordagem
Segundo o Relatório Mundial sobre Drogas 2021,
divulgado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês) em junho, o consumo global de drogas ilícitas não diminuiu, pelo contrário, há até a possibilidade de acréscimo desse consumo.
Em sua concepção, Jordão diz que "as drogas e o seu comércio
são uma faceta da economia capitalista, e não é através da criminalização que esse comércio vai parar", complementando que no caso do Brasil, "os benefícios em mudar a abordagem do tema são diversos".
"Se o país descriminalizasse as drogas, as incursões policiais em comunidades de indivíduos negros e periféricos, que são retratados como os perpetuadores do tráfico de drogas, diminuiriam. Também ajudaria a resolver outro problema grave que é o encarceramento em massa, a partir do momento que o tráfico é o crime que leva mais pessoas a serem presas – e muitas delas sem acesso a julgamento. Ao mesmo tempo, colaboraria no tratamento de pessoas que fazem uso problemático de drogas."
O especialista chama atenção também para o "debate científico mais avançado o qual mostra que
algumas drogas não são tão nocivas, como a maconha, por exemplo" e que com a legalização o país ganha "não só através de impostos, que são taxados em cima do produto, como vários comércios que seriam abertos com limite de consumo e venda, mas que movimentaria na casa dos bilhões a economia".
Além desses aspectos, seriam levantadas, com a mudança de abordagem, questões como "o racismo e qual papel do Estado e da nossa polícia nesse combate aos narcóticos", assim como uma melhor articulação da política de redução de danos, a qual "deve ser pensada complementarmente a outras políticas mais amplas, uma vez que estudos mostram que ainda há muitas dúvidas sobre como aplicar essas diretrizes".
"É necessário mudar a política no combate às drogas, uma vez que ela é racista, tem nome e endereço, pois é concentrada nos negros e nas comunidades de periferia, além de ser imperialista", completou Jordão.
Fonte Sputinik
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