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sexta-feira, 17 de abril de 2020

O argumento falso de Bolsonaro

O presidente Jair Bolsonaro e o novo ministro da Saúde, Nelson Teich, durante pronunciamento no Palácio do Planalto — Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

O presidente e o novo ministro da Saúde criticam a oposição entre saúde e economia. Mas os próprios economistas recomendam quarentenas severas para reduzir as mortes



No discurso em que anunciou a demissão do ministro Luiz Henrique Mandetta por divergência na estratégia de combate à Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro reiterou sua preocupação com a economia e o emprego. Repetiu que o remédio "não pode ser pior que a doença".

O novo ministro da Saúde, Nelson Teich, criticou quem opõe saúde e economia ao falar do coronavírus. “Esse tipo de problema é desastroso porque trata estratégias complementares e sinérgicas como se fossem antagônicas”, escreveu em texto numa rede social.

Na primeira fala como ministro, Teich elaborou a questão: “Uma coisa importante do desenvolvimento econômico é que ele arrasta as outras coisas. Quanto mais é desenvolvido economicamente um país, mais você investe em educação, mais você investe em saúde, mais você tem recurso para ajudar a sociedade”.

Grosso modo, a tese dele é que, sem emprego nem recursos, mais gente adoece. Não há a menor dúvida de que isso é verdade. Só que no médio e no longo prazo. Que dizer de uma pandemia que matará milhares de brasileiros nas próximas semanas? Quem oferece mais risco imediato? A crise econômica ou o vírus?

A ampla maioria dos economistas, ouvidos numa pesquisa recente da organização Chicago Booth, diz que o vírus. Na opinião de 97% (ponderada pelo grau de confiança), é preciso tolerar “uma contração muito grande na atividade econômica até que a disseminação das infecções tenha caído significativamente”. Para 89%, “interromper as quarentenas num momento em que a chance de ressurgimento das infecções continua alta levará a um dano econômico maior do que mantê-las para eliminar o risco de ressurgimento”.

Tradução: melhor pagar um preço mais alto no curto prazo e garantir as condições de vigilância necessárias para o futuro, de modo a manter o vírus sob controle depois da primeira onda da epidemia (leia mais sobre o fim das quarentenas neste post). Só assim será possível uma retomada econômica consistente. A prioridade imediata, na opinião dos melhores economistas, é salvar o máximo de vidas.

A história da Gripe Espanhola de 1918 nos fornece um exemplo claro de como uma escolha errada pode apresentar consequências nefastas. Num estudo publicado no final do mês passado, os economistas Sergio Correa, Stephan Luck e Emil Verner constataram que, nos Estados Unidos, as cidades que agiram mais agressivamente, suspenderam as aulas mais cedo, por mais tempo e adotaram medidas mais duras de distanciamento social se recuperaram mais rápido ao final da pandemia. “As medidas não apenas reduzem a mortalidade, mas podem também mitigar os efeitos econômicos adversos”, escreveram.

Teich está certo, portanto, ao criticar a oposição entre saúde e economia. Mas no curto prazo há uma escolha incontornável, que envolve conhecimento e valores. Ou bem o governo impõe quarentenas severas para tentar restringir o contágio pelo vírus, ou então adota uma postura mais frouxa e permite o contato social, em nome da retomada das atividades. Não há como fugir a tal opção.

O conhecimento científico informa que o distanciamento social tem eficácia para deter o contágio. Os exemplos de países como China, Itália e agora Estados Unidos também corroboram tal realidade. Quem protesta contra isso simplesmente ignora os fatos. É possível acreditar que não é necessária uma quarentena tão extensa ou severa. Mas isso necessariamente significará mais gente morta, mais medo da doença e menos confiança econômica no futuro.

Não é que haja oposição entre saúde e economia. Mas a relação entre as duas não é unívoca nem linear. Se, como querem Bolsonaro e Teich, o emprego e a situação econômica são condições necessárias para a manutenção da saúde da população, essa é uma relação que se manifesta em períodos mais longos. No curto prazo, a retomada da economia dependerá de reduzir a quantidade de mortes e de garantir a contenção do vírus.

“Embora continuar com a vida normal talvez evitasse uma recessão severa, também causaria centenas de milhares de mortes a mais”, afirma  estudo de economistas da Universidade Northwestern“Com base nas estimativas aceitas para o custo de uma vida perdida, esse saldo negativo em vidas humanas mais que cancelará os benefícios econômicos esperados.”

Olhando para a economia americana, eles estimaram o custo de cada vida perdida em torno de US$ 9,3 milhões (valor aceito pelo governo em cálculos atuariais desse tipo). Levando em conta as simulações que preveem milhões de mortos no cenário sem nenhum distanciamento social, o custo das mortes somaria dezenas de trilhões de dólares e superaria facilmente qualquer recessão (o PIB americano está pouco acima de US$ 20 trilhões).

Qualquer que seja a escolha do governo, o cenário não é positivo. Não há como evitar uma recessão. Mas as tentativas de mitigá-la no curto prazo aceitando um maior número de mortes carecem de sentido – tanto médico quanto econômico.

O custo da pandemia será elevadíssimo. Bolsonaro não tem como esconder tal fato nem como fingir que há “exagero” nas tentativas de conter o vírus. Não há. O que há é uma situação trágica, única na história humana, que exige dos líderes mais inteligência, competência e determinação do que ele tem sido capaz de demonstrar.


Fonte: G1/Por Helio Gurovitz

Diretor de redação da revista Época por 9 anos, tem um olhar único sobre o noticiário. Vai ajudar você a entender melhor o Brasil e o mundo. Sem provincianismo


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