(Foto: USP Imagem | Gustavo Raniere/Ministério da Economia) |
Além de acabar com estabilidade do trabalhador, medida provisória do governo pode incentivar que empresas não dispensem seus funcionários para o home office. Em caso de funcionário que contrai vírus no escritório e morre, mudança dificulta pagamento de indenização por parte da empresa
Agência Repórter Brasil - “Me sinto um criminoso, de sair na rua, pegar metrô, de ser um vetor. Já pensou se eu transmito o vírus pra minha mãe?”. João (nome fictício) é economista e, portanto, poderia trabalhar de casa, mas está sendo obrigado pela empresa a ir ao escritório. Além do medo de pegar a covid-19 e de ser obrigado a infringir as recomendações de saúde de ficar em casa, ele não sabe que, se contrair o vírus no trabalho, pode ser demitido assim que voltar da licença médica. Foi justamente este um dos precedentes permitidos pela medida provisória (MP) 927/2020, publicada neste domingo pelo governo e que prevê flexibilizações trabalhistas em tempos de pandemia.
O texto gerou fortes críticas não apenas nas redes sociais, mas também do Ministério Público do Trabalho, de associações de juristas e inclusive do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, por permitir, entre outras mudanças, que empresas possam suspender por quatro meses contrato e salário de seus funcionários, deixando os sem rendimentos. Após repercussão negativa, Bolsonaro recuou e postou nas redes sociais que “determinou a revogação” do artigo 18 (o que permitia a suspensão). No entanto, nenhuma alteração oficial ao texto ainda foi feita – e, pela mensagem do presidente, os demais pontos da MP não serão alterados.
Um deles, o artigo 29, afirma que os “casos de contaminação pelo coronavírus (covid-19) não serão considerados ocupacionais”, ou seja, não serão considerados acidentes ou doenças de trabalho, exceto quando o trabalhador conseguir comprovar que essa contaminação aconteceu no escritório, comércio ou fábrica.
Segundo especialistas trabalhistas ouvidos pela Repórter Brasil, a relação entre a doença e o ambiente de trabalho é um dos poucos casos hoje em que o trabalhador possui garantia de estabilidade no emprego – após retornar da licença médica, ele não pode ser demitido durante 12 meses. Ou seja, ao dificultar a responsabilização da empresa, o governo abre a porta para a demissão justo em um momento de possível crise econômica generalizada.
“Todas as pessoas que não têm escolha de parar de trabalhar, como um porteiro, terão que comprovar que adquiriram o vírus no trabalho. Mas é complicado comprovar porque é uma doença viral, e o corpo elimina o vírus depois de um tempo”, analisa Valdete Souto Severo, presidente da Associação de Juízes para a Democracia.
Além de retirar direitos do trabalhador, a MP incentiva que empresas continuem em funcionamento normal e colocando seus trabalhadores em risco. “Esse artigo mostra para quem a lei foi feita: para a classe patronal. É como se o governo estivesse dando um salvo-conduto para a empresa: ‘coloca esse trabalhador em exposição’”, afirma Severo.
O advogado trabalhista Fernando José Hirsch, sócio do escritório LBS Advogados, concorda. “É uma medida para proteger o empresário, para fazer com que as empresas funcionem, o que é o inverso do que seria recomendado do ponto de vista da saúde”, afirma. Em caso de contaminação no escritório, o trabalhador poderia alegar que adquiriu o vírus por ser impedido de fazer quarentena, afirma Hirsch, mas vai precisar demonstrar que estava sem máscara, que não tinha álcool em gel e que a contaminação não ocorreu em outro lugar, o que não é tão simples.
Ao tornar subjetiva a responsabilização da empresa em caso de contaminação, a MP também tem grave impacto nos casos de mortos em decorrência do vírus, já que dificulta a obtenção de indenização na Justiça. Isso afeta não apenas as famílias de funcionários contaminados, mas também aquelas em que algum membro do grupo de risco morreu após ser exposto a um trabalhador infectado em ambiente profissional. “A família fica totalmente sem respaldo e isso vai na contramão do que decidiu o Supremo Tribunal Federal recentemente em relação a esta questão da responsabilidade do empregador por dano decorrente por doenças no trabalho ou exposição a riscos. A responsabilidade é objetiva do empregador, segundo o STF”, analisa a presidente da Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (Abrat), Alessandra Camarano Martins.
Trabalhador demitido pode ir à Justiça
Em caso de demissão após adquirir o coronavírus no emprego, o trabalhador pode entrar com um processo na Justiça, segundo Ângelo Fabiano Farias da Costa, da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho. “Tem chances de ele ser reintegrado judicialmente no trabalho ou ser indenizado pelo período de 12 meses.” No caso da indenização pela contaminação, ela poderia ser pedida em uma ação de responsabilidade civil. Costa destaca ainda que, no caso de situações coletivas, como o de um surto no ambiente de trabalho, os trabalhadores poderão denunciar o caso ao Ministério Público do Trabalho, que poderá entrar com ação contra a empresa.
No entanto, o problema de depender da Justiça para comprovar a responsabilidade da empresa é que, com a recente reforma trabalhista, o trabalhador poderá ser condenado a pagar os honorários advocatícios e periciais caso não tenha ganho de causa. “O governo quer evitar uma enxurrada de ações requerendo estabilidade alegando que foi doença de trabalho.”
MP dificulta comprovação
A comprovação do contágio no escritório é dificultada pela própria MP, segundo Camarano Martins, uma vez que seu artigo 15 suspende, durante o estado de calamidade pública, “a obrigatoriedade de realização dos exames médicos ocupacionais, clínicos e complementares”, com exceção dos exames demissionais, que poderá ser feito 60 dias após o encerramento do estado de calamidade pública.
“Como vai ser possível saber se houve contágio no escritório ou não se o trabalhador está sem exame médico periódico e se o exame demissional só ocorrerá depois de 60 dias?”, questiona a presidente da Abrat.
O exame demissional atesta as condições do trabalhador no momento de seu desligamento e tem como finalidade garantir que ele não será dispensado pela empresa com problemas de saúde decorrentes do exercício de sua atividade profissional. Hoje, o laudo desse exame é obrigatório para que a rescisão do contrato de trabalho seja homologada.
Além de dificultar o acesso aos direitos decorrentes de acidente de trabalho, a suspensão dos exames médicos periódicos pode, inclusive, colocar mais trabalhadores em risco. “Ela dificulta o diagnóstico do coronavírus, que já está dificultado porque não tem teste para todo mundo”, lembra a presidente da Abrat. Em tempos de pandemia, os exames periódicos feitos pelos médicos das empresas poderiam estar ajudando a identificar casos suspeitos de contaminação pela doença, sugerindo o isolamento desses trabalhadores para que não contagiem seus colegas.
Alguns advogados ponderam que, em alguns casos, a suspensão dos exames médicos periódicos é sim justificada, uma vez que evita que um trabalhador em home office seja obrigado a sair de sua residência apenas por uma formalidade burocrática. O problema é a forma como isso impacta o trabalhador que continua na ativa.
A mudança promovida pelo governo não deve ter efeito para os profissionais da saúde, que são os mais expostos ao risco de contágio por coronavírus, porque a ligação é óbvia, diz a presidente da AJD. No entanto, o mesmo não se aplica a outros trabalhadores – como os da área do comércio, telemarketing, jornalismo, indústria e funcionalismo público, que ainda estão obrigados a trabalhar.
Preocupado em legislar em favor das empresas, o governo se esqueceu de pontos importantes para o trabalhador neste momento, como sobre a dispensa da necessidade de atestado médico para caso de afastamento por suspeita de coronavírus – a OMS tem recomendado que se evite procurar o sistema de saúde em caso de sintomas leves da doença, orientando que as pessoas fiquem imediatamente em quarentena, para reduzir o risco de contágio, só procurando um hospital em caso de agravamento dos sintomas. “Isso é mais uma prova de que o governo não está preocupado com a saúde da população. A orientação do governo tinha que ser de a empresa dispensar todos, independentemente de atestado. A MP não tem uma única linha sobre isso”, diz Severo.
“Essa MP tem um caráter simbólico: enquanto o mundo está parado, esperando dos seus governos uma posição, nosso governo dá como resposta que vai precarizar mais, tirar direitos e suspender qualquer exigência em segurança e saúde do trabalho. Qual é o recado social que está sendo dado aqui?”, conclui.
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